terça-feira, 21 de outubro de 2008

(Re)Encontros

Sabem quando uma canção nos invade o espaço cerebral abruptamente? Assim sem pedir licença? E depois instala-se o dia inteiro na nossa mente e de lá não sai enquanto não a trautearmos em voz alta e passarmos, inevitavelmente pela vergonha de sermos apanhados com a boca na cantiga?
Sabem não sabem? Nestes últimos dias tenho andado com “Um brilhozinho nos olhos” do Sérgio Godinho. “(…) É que hoje fiz um amigo / e coisa mais preciosa no mundo não há”. Todos dizemos que para além da família (mais próxima pelo menos) os amigos são o que de mais importante temos. Todavia, se pensarmos bem na relação amizade / tempo dispendido com ela, veremos que muito provavelmente não estamos a estabelecer as prioridades nos seus meritórios lugares.
Falta de tempo, de espaço, de lugar na agenda; um “temos de combinar qualquer coisa, assim para a semana, um café ou um almoço e não te esqueças de ligar ao "X”. Por falta de tempo, a organização do encontro que fomos nós a sugerir acaba por ser delegada na pessoa com a qual queremos estar.
Mais fácil dito que feito dirão alguns? Verdade. Num horário que varia, na maioria das vezes, entre as-crianças-que-têm-de-ser-levadas-à -escola, dos banhos a dar, dos deveres a verificar, do jantar para decidir, a “coisa mais preciosa” perde chão, afogando-se no terreno árido dos dias úteis (?).
Falta-nos tempo, é verdade, lembramo-nos dos que queremos bem, não o nego, Sou vítima também de alguns dos obstáculos rotineiros: a distância física, a falta de tempo mas também culpada, porque nem sempre todos os espaços da agenda estão repletos, nem todas as distâncias são tão longas. Como eu? todos nós. Que nos desculpamos connosco mesmos, que velamos algum laxismo sob o manto dos horários completos, cheios de nós e dos nossos afazeres.
Mas quando finalmente o café, chá ou jantar chega que bem sabe saboreá-lo. Vivemos o reencontro como se nunca nos tivéssemos afastado dos que queremos… mas nem sempre. Vezes há em que o embaraço se sobrepôs ao tempo, em que a vida que vivemos até então já não cabe no espaço que a distância criou.
É contra isso que tento lutar, nem sempre saio vitoriosa, assumo. Estou muito longe e muito menos do que gostaria de estar com os meus amigos. A vida coloca-se entre nós, mas também é ela que a eles nos devolve. Outro dia estive com uma amiga, revisitámo-nos em conversa amena e devo dizer-vos que apesar da qualidade do momento, “soube-me a pouco”.

Vanessa Limpo

in "Expresso Sem Mais", edição de 18 de Outubro de 2008

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

A noite passada

"A noite passada acordei com o teu beijo
descias o Douro e eu fui-te buscar ao Tejo
vinhas numa barca que não vi passar
corri pela margem até à beira do mar
até que te vi num castelo de areia
cantavas "sou gaivota e fui sereia"
ri-me de ti: " então não voas?"
e então tu olhaste
depois sorriste
abriste a janela
e voaste



A noite passada fui passear ao mar
a viola irmã cuidou de me arrastar
chegado ao mar alto abriu-se em dois o mundo
olhei para baixo dormias lá no fundo
faltou-me o pé senti que me afundava
por entre as algas o teu cabelo boiava
a lua cheia escureceu nas águas
e então falámos
e então dissemos
aqui vivemos muitos anos



A noite passada um paredão ruiu
pela fresta aberta o meu peito fugiu
estavas do outro lado a tricotar janelas
vias-me em segredo ao debruçar-te nelas
cheguei-me a ti disse baixinho "olá"
toquei-te no ombro e a marca ficou lá
o sol inteiro caiu entre os montes
e então tu olhaste
depois sorriste
disseste: "ainda bem que voltaste".

A noite passada, Sérgio Godinho


Para J... todos os dias são um regresso.

terça-feira, 14 de outubro de 2008

(P)reserva

Vinha hoje no metro (já sei, a síndrome dos transportes públicos já não se aguenta mas hélas, é ali o epicentro do meu dia laboral) quando comecei a pensar nas diferentes formas que cada um tem de tentar ultrapassar a situação que ,no fundo, é sempre algo embaraçante: estarmos diariamente sentados, ao lado, esmagados (soterrados em algumas situações limite) junto com uma multidão de indivíduos que não conhecemos e que por breves momentos temos de partilhar alguns dos nossos preciosos sentidos.
Comecemos com a visão: somos forçados a olhar para quem está à nossa frente, e ao olharmos mentalmente estabelecemos logo toda uma panóplia de juízos, ilações e perfil dessa pessoa. A roupa, os adereços ajudam-nos todos os dias a entrarmos um pouco na vida dos outros.
Ouvimos, mesmo que involuntariamente, as possíveis conversas telefónicas que os outros têm, parte da agenda de cada um de nós é quotidianamente partilhada com um conjunto de ouvintes que embora esteja ali presente, não o está ao nível da nossa consciência ou, pelo menos, da nossa atenção. Poucas situações nos despem tanto como quando estamos num transporte. A consciência de que estamos a ser vistos, cheirados, ouvidos, sentidos, surge apenas se algo escapa à nossa actuação rotineira: uma palavra mais forte ao telemóvel, um encontrão súbito, um pedido de indicação.
Contudo sendo nós mestres do disfarce, da fuga ao que nos pode expor, pedimos ajuda às tecnologias (o nosso primeiro-ministro iria gostar agora desta parte, tudo o que tem a palavra tecnológico merece a sua atenção) para nos cobrir com mantos de música, (MP3, Ipods), escrita (sms), sendo estas trocadas apenas (em poucos mas bons casos) pela leitura: lê-se mais hoje nos transportes, tanto que já não me sinto uma extra-terrestre (mas apenas nesta situação, há que o salientar) quando abro um livro. Todavia até aqui criamos estratégias de subterfúgio aos Outros: é muito comum notar que as pessoas trazem livros forrados a branco, como que a proteger-se de olhares indevidos (talvez por vergonha, ou por privacidade apenas).
Num mundo cada vez mais testemunha de si próprio, encurtado pelos avanços tecnológicos em que todos sabemos tudo à distância de um clic ou mensagem, é curioso ver que há tradições que ainda são o que eram: ainda nos surpreendemos com o que nos é estranho, rimos com o que nos é comum e procuramos aquilo que nos preserva.


Vanessa Limpo

in "Expresso Sem Mais", edição de 4 de Outubro de 2008

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Parapeito...

"...nunca dês o coração a quem não quer (...) Evitei a vida como um pássaro que voa não se sabe como nem para onde, procurando apenas não pousar. Não passei pelas coisas, não compareci, inventei, fechei os olhos, menti, olhei de lado, disfarcei, sempre que pude, fugi. Hoje trago a alma branca, magoada de tanto protegê-la. Mas não a vendi. As minhas intenções eram boas, eu é que não as percebi. (...)A vida não me cabe no coração. (...)
Um dia vou no vaivém dos barcos que vejo da minha janela e atravesso o rio com eles. Um dia ponho os meus olhos num ponto do céu de onde nunca mais possam fugir, tão azul e tão longíquo, que eu nunca mais os possa reaver. (...) Um dia vou para as casas altas onde as coisas não se vêem. Ser como poeira num parapeito num mês sem vento. Um dia atiro a alma ao ar e serei friamente feliz. (...) Não me lembro do que aconteceu e do que inventei.
Mas um dia a minha alma foi contra a tua. Passámos dias inteiros agarrados. Não havia saída, nem dia, nem noite, nem eu, nem tu, nem vida lá fora. Era muito mais que amor.
O amor desdiz-se. Desmente-se. (...) O amor fica. (...) O amor fica, para nos lembrar da nossa fraqueza, da nossa doçura, da nossa humanidade. Para nos fazer mais pequenos do que pensámos. Para nos proteger da esperança. (...) Numa hora de amor envelhecemos vinte anos. (...) Era a nossa vida a passar."

Cemitério de raparigas, Miguel Esteves Cardoso,1996.