domingo, 31 de outubro de 2010

Segredo...



(Elliot Erwitt, California, 1955)


"Um segredo de um casamento feliz

Desde que a Maria João e eu fizemos dez anos de casados que estou para escrever sobre o casamento. Depois caí na asneira de ler uns livros profissionais sobre o casamento e percebi que eu não percebo nada sobre o casamento.
Confesso que a minha ambição era a mais louca de todas: revelar os segredos de um casamento feliz. Tendo descoberto que são desaconselháveis os conselhos que ia dar, sou forçado a avisar que, quase de certeza, só funcionam no nosso casamento.

Mas vou dá-los à mesma, porque nunca se sabe e porque todos nós somos muito mais parecidos do que gostamos de pensar.

O casamento feliz não é nem um contrato nem uma relação. Relações temos nós com toda a gente. É uma criação. É criado por duas pessoas que se amam.

O nosso casamento é um filho. É um filho inteiramente dependente de nós. Se nós nos separarmos, ele morre. Mas não deixa de ser uma terceira entidade."

Crónica de Miguel Esteves cardoso, in "Público", edição de 25 de Outubro de 2010.

Quando esse filho é amado por ambos os casados - que cuidam dele como se cuida de um filho que vai crescendo -, o casamento é feliz. Não basta que os casados se amem um ao outro. Têm também de amar o casamento que criaram.

O nosso casamento é uma cultura secreta de hábitos, métodos e sistemas de comunicação. Todos foram criados do zero, a partir do material do eu e do tu originais.

Foram concordados, são desenvolvidos, são revistos, são alterados, esquecidos e discutidos. Mas um casamento feliz com dez anos, tal como um filho de dez anos, tem uma personalidade mais rica e mais bem sustentada, expressa e divertida do que um bebé com um ano de idade.

Eu só vivo desta maneira - que é o nosso casamento - vivendo com a Maria João, da maneira como estamos um com o outro, casados. Nada é exportável. Não há bocados do nosso casamento que eu possa levar comigo, caso ele acabe.

O casamento é um filho carente que dá mais prazer do que trabalho. Dá-se de comer ao bebé mas, felizmente, o organismo do bebé é que faz o trabalho dificílimo, embora automático, de converter essa comida em saúde e crescimento.

Também o casamento precisa de ser alimentado mas faz sozinho o aproveitamento do que lhe damos. Às vezes adoece e tem de ser tratado com cuidados especiais. Às vezes os casamentos têm de ir às urgências. Mas quanto mais crescem, menos emergências há e melhor sabemos lidar com elas.

Se calhar, os casais apaixonados que têm filhos também ganhariam em pensar no primeiro filho que têm como sendo o segundo. O filho mais velho é o casamento deles. É irmão mais velho do que nasce e ajuda a tratar dele. O bebé idealmente é amado e cuidado pela mãe, pelo pai e pelo casamento feliz dos pais.

Se o primeiro filho que nasce é considerado o primeiro, pode apagar o casamento ou substitui-lo. Os pais jovens - os homens e as mulheres - têm de tomar conta de ambos os filhos. Se a mãe está a tratar do filho em carne e osso, o pai, em vez de queixar-se da falta de atenção, deve tratar do mais velho: do casamento deles, mantendo-o romântico e atencioso.

Ao contrário dos outros filhos, o primeiro nunca sai de casa, está sempre lá. Vale a pena tratar dele. Em contrapartida, ao contrário dos outros filhos, desaparece para sempre com a maior das facilidades e as mais pequenas desatenções. O casamento feliz faz parte da família e faz bem a todos os que também fazem parte dela.

Os livros que li dão a ideia de que os casamentos felizes dão muito trabalho. Mas se dão muito trabalho como é que podem ser felizes? Os livros que li vêem o casamento como uma relação entre duas pessoas em que ambas transigem e transaccionam para continuarem juntas sem serem infelizes. Que grande chatice!

Quando vemos o trabalho que os filhos pequenos dão aos pais, parece-nos muito e mal pago, porque não estamos a receber nada em troca. Só vemos a despesa: o miúdo aos berros e a mãe aflita, a desfazer-se em mimos.

É a mesma coisa com os casamentos felizes. Os pais felizes reconhecem o trabalho que os filhos dão mas, regra geral, acham que vale a pena. Isto é, que ficaram a ganhar, por muito que tenham perdido. O que recebem do filho compensa o que lhe deram. E mais: também pensam que fizeram bem ao filho. Sacrificam-se mas sentem-se recompensados.Num casamento feliz, cada um pensa que tem mais a perder do que o outro, caso o casamento desapareça. Sente que, se isso acontecer, fica sem nada. É do amor. Só perdeu o casamento deles, que eles criaram, mas sente que perdeu tudo: ela, o casamento deles e ele próprio, por já não se reconhecer sozinho, por já não saber quem é - ou querer estar com essa pessoa que ele é.

Se o casamento for pensado e vivido como uma troca vantajosa - tu dás-me isto e eu dou-te aquilo e ambos ficamos melhores do que se estivéssemos sozinhos -, até pode ser feliz, mas não é um casamento de amor.

Quando se ama, não se consegue pensar assim. E agora vem a parte em que se percebe que estes conselhos de nada valem - porque quando se ama e se é amado, é fácil ser-se feliz. É uma sorte estar-se casado com a pessoa que se ama, mesmo que ela não nos ame.

Ouvir um casado feliz a falar dos segredos de um casamento feliz é como ouvir um bilionário a explicar como é que se deve tomar conta de uma frota de aviões particulares - quantos e quais se devem comprar e quais as garrafas que se deve ter no bar, para agradar aos convidados.

Dirijo-me então às únicas pessoas que poderão aproveitar os meus conselhos: homens apaixonados pelas mulheres com quem estão casados.

E às mulheres apaixonadas pelos homens com quem estão casadas? Não tenho nada a dizer. Até porque a minha mulher continua a ser um mistério para mim. É um mistério que adoro, mas constitui uma ignorância especulativa quase total.

Assim chego ao primeiro conselho: os homens são homens e as mulheres são mulheres. A mulher pode ser muito amiga, mas não é um gajo. O marido pode ser muito amigo, mas não é uma amiga.

Nos livros profissionais, dizem que a única grande diferença entre homens e mulheres é a maneira como "lidam com o conflito": os homens evitam mais do que as mulheres. Fogem. Recolhem-se, preferem ficar calados.

Por acaso é verdade. Os livros podem ser da treta mas os homens são mais fugidios.

Em vez de lutar contra isso, o marido deve ceder a essa cobardia e recolher-se sempre que a discussão der para o torto. Não pode ser é de repente. Tem de discutir (dizê-las e ouvi-las) um bocadinho antes de fugir.

Não pode é sair de casa ou ir ter com outra pessoa. Deve ficar sozinho, calado, a fumegar e a sofrer. Ele prende-se ali para não dizer coisas más.

As más coisas ditas não se podem desdizer. Ficam ditas. São inesquecíveis. Ou, pior ainda, de se repetirem tanto, banalizam-se. Perdem força e, com essa força, perde-se muito mais.

As zangas passam porque são substituídas pela saudade. No momento da zanga, a solidão protege-nos de nós mesmos e das nossas mulheres. Mas pouco - ou muito - depois, a saudade e a solidão tornam-se insuportáveis e zangamo-nos com a própria zanga. Dantes estávamos apenas magoados. Agora continuamos magoados mas também estamos um bocadinho arrependidos e esperamos que ela também esteja um bocadinho.

Nunca podemos esconder os nossos sentimentos mas podemos esconder-nos até poder mostrá-los com gentileza e mágoa que queira mimo e não proclamação.

Consiste este segredo em esperar que o nosso amor por ela nos puxe e nos conduza. A tempestade passa, fica o orgulho mas, mesmo com o orgulho, lá aparece a saudade e a vontade de estar com ela e, sobretudo, empurrador, o tamanho do amor que lhe temos comparado com as dimensões tacanhas daquela raivinha ou mágoa. Ou comparando o que ganhamos em permanecer ali sozinhos com o que perdemos por não estar com ela.

Mas não se pode condescender ou disfarçar. Para haver respeito, temos de nos fazer respeitar. Tem de ficar tudo dito, exprimido com o devido amuo de parte a parte, até se tornar na conversa abençoada acerca de quem é que gosta menos do outro.Há conflitos irresolúveis que chegam para ginasticar qualquer casal apaixonado sem ter de inventar outros. Assim como o primeiro dever do médico é não fazer mal ao doente, o primeiro cuidado de um casamento feliz é não inventar e acrescentar conflitos desnecessários.

No dia-a-dia, é preciso haver arenas designadas onde possamos marrar uns com os outros à vontade. No nosso caso, é a cozinha. Discutimos cada garfo, cada pitada de sal, cada lugar no frigorífico com desabrida selvajaria.

Carregamos a cozinha de significados substituídos - violentos mas saudáveis e, com um bocadinho de boa vontade, irreconhecíveis. Não sabemos o que representam as cores dos pratos nas discussões que desencadeiam. Alguma coisa má - competitiva, agressiva - há-de ser. Poderíamos saber, se nos déssemos ao trabalho, mas preferimos assim.

A cozinha está encarregada de representar os nossos conflitos profundos, permanentes e, se calhar, irresolúveis. Não interessa. Ela fornece-nos uma solução superficial e temporária - mas altamente satisfatória e renovável. Passando a porta da cozinha para irmos jantar, é como se o diabo tivesse ficado lá dentro.

Outro coliseu de carnificina autorizada, que mesmo os casais que não podem um com o outro têm prazer em frequentar, é o automóvel. Aí representamos, através da comodidade dos mapas e das estradas mesmo ali aos nossos pés, as nossas brigas primais acerca das nossas autonomias, direcções e autoridades para tomar decisões que nos afectam aos dois, blá blá blá.

Vendo bem, os casamentos felizes são muito mais dramáticos, violentos, divertidos e surpreendentes do que os infelizes. Nos casamentos infelizes é que pode haver, mantidas inteligentemente as distâncias, paz e sossego no lar."

Crónica de Miguel Esteves Cardoso, in "Público", edição de 25 de Outubro de 2010.

O texto é grande mas vale a cada letra, cada sílaba. MEC continua a ser The Special One, pelo menos para mim.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Dúvida(s)



Fotografia: Jorge Molder


"(...) Através da janela conseguiu vislumbrar a Lua, empoleirada ali sozinha, bem no cume da noite. O tom prateado do céu azul-escuro apresentava minúsculas partículas cor-de-rosa suspensas no meio das inaudíveis tempestades de luz. Se a ternura tivesse cor, então seria esta a cor da ternura. (...) Sentia uma ténue impaciência por cada momento que acontecia, não aquela avidez dilacerante, mas antes aquela certeza semi-inquieta de uma mãe à porta de uma escola, à espera do filho, que emergirá no meio da multidão. (...) Sentia o que era ser jovem. Sentia o que era a lua. As suas próprias orações e pensamentos eram coisas vivas que partilhavam o seu quarto (...) Não tinha a certeza que isto era amor. Pensou que o coração de cada um de nós devia doer um pouco sempre que se começava a sentir bem acerca de si mesmo".

Martin Amis, Os outros.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Astro...



Foto: Jonathan Waiter.



O Sol põe-se,

A Lua nasce todas as noites num parto de Negro

a cada noite.

Só tu não te pões por trás de uma estrela.

Aqui permaneces,

silêncio por dizer,

Astro que insiste em nascer,

memória de constelações presas

à carne

e ao tempo.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Os contentores da infância...



Elliot Erwitt


Escrevem nos cadernos acabados de estrear, rabiscam letras ainda verdes nas suas memórias, dedilham números, desenham colcheias e imaginam novas melodias com as pautas da sua tenra imaginação.
E ainda cheira a infância na sala. O pó do giz é rei e senhor na tela negra do quadro que se veste de letras meninas. A língua que se fala tem traços de inocência e algumas marcas de insubordinação. Sabem o que querem, muito melhor ainda o que não querem. Desejam que as vontades sejam satisfeitas. Estes desejos, filhos de rituais já estabelecidos, são missão complexa de levar a bom porto.
É difícil estabelecer regras quando o tempo nos falta, quando o cansaço nos combate e suga a vontade de nos sentamos com eles. O compromisso entre as regras, a formação e a culpa torna-se duelo, batalha que se trava quotidianamente.
Assim avançam, meninice dentro, munidos das certezas próprias de um tempo que ainda germina dentro de si. Nesta cronologia de todos os possíveis, em que ainda falta tanto tempo para tudo, constroem entre pátios e recreios as sementes de um carácter que há-de vir, de uma Pessoa cuja génese se está a moldar.
E observo-os, aqui do outro lado dos cadernos e das folhas sequiosas de Saber. Deste lado, a paisagem é mais dura, as cores são outras. A vista detém-se no chão duro para os seus pés, nas balizas pouco seguras para os seus pueris corpos e, nos contentores em que se encontram, aprender não rima com os sonhos de qualidade que merecem ter.
Fazemos o melhor que sabemos, que podemos, que conseguimos edificar a cada dia. Estamos todos cá com e por eles. E, deste modo, contêm-se as horas, os dias e cada palavra apagada pelo pó. Brincam à infância, brincam à vida, lá no sítio onde a ingenuidade mora, contentes, ignorando que o que os separa do mundo são as paredes improvisadas, contidas, brancas, tentando abrigá-los do frio lá fora.


Vanessa Limpo

in "Expresso Sem Mais", edição de dia 9 de Outubro de 2010.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Primeira vez...



"(...) Bebo a noite até o Sol chegar.
Ele sempre me encontrou.(...)

E se for a primeira vez, que os teus dedos
tocam a luz da manhã.
Dá-me a tua mão. Respira o ar do dia.
Talvez nada mais."

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Autoportrait III



(Ana Vidigal).

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

O que a noite nos fez...


(Alfama)


‎"E por vezes as noites duram meses / E por vezes os meses oceanos / e por vezes os braços que apertamos / Nunca mais são os mesmos / E por vezes encontramos de nós em poucos meses / o que a noite nos fez em muitos anos".

"E por vezes", David Mourão Ferreira em "Do amor e dos Dias", Camané