sábado, 10 de dezembro de 2011

Photomaton intérieur

"Uma noite fria e serena cobria o mundo, quando saí; e uma paz nova, húmida de ternura, como o silêncio depois de um choro, envolveu-me, suave, o ermo dos meus passos.
Na quietude da noite, como um regaço do fim, parecia-me que cada parte magoada da minha carne se dispersava no ar, ávida de esquecimento, e que toda a minha fadiga subia alto, como um fumo, até à cúpula dos astros, e aí se dissipava. Já o vulto da montanha a oriente me chamava com uma voz intrínseca e original, como um olhar que nos fita e ultrapassa.".

in Manhâ submersa, Vergílio Ferreira.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

"Chesterfield"

As paredes são cor branco-cor-de-hospital, como seria de prever.
Tudo está certo ali: o branco das paredes rima com a palidez dos corredores moribundos de saúde. Apenas enfeitados pelos sorrisos dos enfermeiros, médicos e outros membros autoctones à Doença.
Aqui e ali alguns focos de pacientes, a copa à minha esquerda emanando o odor proveniente dos tachos e panelas fumegantes e sedentas de estômagos hospedeiros. Um silêncio rendilhava o ambiente. Um silêncio atípico, diferente de outros hospitais que conheci.
O quarto povoado de três pacientes e um deles tu.
Não te via há tantos anos. Estás agora sem o teu rabo-de-cavalo, imagem de marca juntamente com o cigarro e as piadas sempre prontas. "Olha, já ouviste esta?" - dizias sempre que me vias, quando por vezes nos cruzávamos nalguma rua da Outra Margem. E lá dizias a tua piada e o sorriso escancarava-se. E eu ria por solidariedade. Por e para te ver feliz.
Hoje estavas cor-de-hospital com um ligeiro amarelado que te percorria a pele e fazia contraste com o azul do roupão. Tens agora os cabelos brancos e curtos. Um corte abrupto. Como o corte que te fizeram. Talvez se chame coincidência? Ou será antes coerência?
Cortaram-te a pele e foram ao tutanto da ferida. Rasgaram, perfuraram: para lá do osso, para lá de ti. Coseram e fecharam. Não te coseram, todavia, os medos, não te perfuraram as artérias do Receio, para essas ainda não há cirugias.
Por baixo da cama, dos lençóis, dos tubos, lado a lado com as cortinas que se correm para não vermos a realidade do vizinho (para que ela nos lembre a nossa finitude), nas catacumbas da Doença não te dissecaram os Sonhos, afinal não há declaração de óbito para Morfeu. Os deuses, como sabes querido L, estão acima de nós.
E por isso sei que venha o que vier, dê no que der, ganharás o Euromilhões e farás a tal viagem transatlântica.
" Já viste o que era se isto tivesse acontecido e eu não tivesse ninguém?", dizes tu, de repente, cortanto tu prório o discurso com o bisturi da tua consciência.
"Sim, já, mas não estás, não estás sozinho".
"Mas há quem esteja".
Sim, L, há quem esteja. Uma vez mais nem cortes subcutâneos nem (elevadas) doses de medicamentos te toldam o espírito. Nem a tua própria doença te deixa dormente para os Outros. E é por isso que gosto de ti. E é por isso que tinha de te ver. Mesmo ao fim destes anos todos.
Não sei a história do sangue faz sentido. Desconheço se foi o sangue que me impeliu a ir ver-te. Muto mais que o sangue que nos une há o sentido de Humanidade que nos abraça.
Tens a tua caixa de Chesterfield no bolso do roupão, dizes que já convenceste as enfermeiras a deixarem-te fumar. "E se vier o médico, que lhe vais dizer?". "São pastilhas", respondes no tom pueril que te é conhecido. Acreditas nas tuas próprias palavras. Tu és a tua própria fé e por isso fazes tanto sentido.
A M sempre a teu lado, sempre atrás de ti, a M contigo ao colo (se pudesse sei que o faria). A M que te mentiu sobre o teu estado, sabendo ela que Amor é também isso, nem que isso lhe tenha custado uma parte do seu equílbrio por uns tempos.
A M que é a Mãe, a Irmã, a Avó, a M que é a tua Gaia, a tua Terra, o teu Continente, a M que te salvou sem tu saberes. Porque Amor é também isso: salvarem-nos sem o pedirmos, sem o sabermos, sem sabermos que o precisamos.
E assim te deixei, entre cama, lençóis, algálias e cicatrizes. Ficas tu, a M, conversa por dizer entre vós e o maço de Chesterfield no regaço.
E enquanto ando pelo corredor que me devolve à cidade e ao Outono mortiço, oiço o vapor do navio e o teu sorriso que embarcou contigo no transatlântico.