Que a língua portuguesa é traiçoeira já ouvimos vastas vezes.
Afinal em que outra língua é que, com a entoação e expressão facial certas, é possível cumprimentar-se alguém, colocando uma questão cuja resposta se encontra, literalmente, à vista: “Olá, então estás por aqui?”. Apetece responder: “Não, hoje enviei o meu HP (não, não confundir com uma conhecida marca de materiais informáticos): Holograma Pessoal.”.
Só na língua de Camões é igualmente possível tentar ser-se educado, utilizando um tempo verbal mais cuidado e ser-se imediatamente brindado com uma resposta trocista: “Bom dia, eu queria um café”. “Ah queria é? Então significa que já não quer?”. Este momento é geralmente acompanhado com um sorriso jocoso que oscila entre a PI (parvoíce inata) e o CE (Chico-espertismo). A pessoa que dá esta resposta, que já foi dada por 85586 pessoas antes de si, considera-se, nesse momento, um intelectual de primeira categoria, uma espécie de Eduardo do Prado Coelho das respostas de balcão.
Contudo, o rol de preciosismos linguísticos destes não termina aqui. E já que estamos a entrar oficialmente na silly season, porquê parar aqui com algo que nela se inscreve? Neste país é comum ser-se olhado com pasmo quando se revela assertividade nas escolhas que se fazem. Quantas são as vezes que estando num restaurante e tendo escolhido, com total grau de certeza o que pretendo degustar, quando no momento em que verbalizo a minha opção, sou surpreendida com a pergunta: “Sim temos esse, mas olhe que o polvo à lagareiro está muito bom, tem a certeza que não quer provar o nosso polvo?”.
Sim, tenho, tenho a certeza. Atendendo a que a capacidade da lecto-escrita foi adquirida aquando dos meus seis anos, creio já a dominar razoavelmente, e tendo já algumas décadas de vida, considero saber quais os sabores que mais aprazem as minhas papilas gustativas. Mas isto é irrelevante. Afinal eu sou apenas a cliente.
Este esgar que balança entre o pasmo e alguma raiva por não ter acatado o conselho, pode ir ainda mais longe, tendo já pedido um prato, vir outro e quando esclareci a troca em questão, ainda oiço algo como: “Pois não é galinha com castanhas, mas não pode levar a galinha com amêndoas?”. Poder posso, querer é que NÂO quero.
Afinal não é isso aquela coisa “gira” que se chama…como é? Ah, é isso: Vontade.
Escusado será dizer que, com isto, perdi a fome.
Vanessa Limpo
in "Expresso Sem Mais", edição de 20 de Junho de 2009.
3 comentários:
Até disso tenho saudades!
E já várias vezes tenho respondido a essa do "queria e agora já não quer?" com um "se eu lhe disser 'quero um bla bla bla' vou parecer mal educado, não acha?". E assim se cala o Eduardo Coelho.
Menina, gente parva a responder torto é o que não falta a este país...Õbservações acutilantes, sim senhora! Parabéns!
... olha que eu estou atrás de um balcão, não é fácil... e esta época da "silly season" é bastante deprimente (AI O STRESS)!!!!! "tire-me um café..." ai tiro? então não ponho AHAHAHAHAHAHAH......... sorry....."quem põe são as galinhas" ahahahahahaha......... enfim, como estas há mais....
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