quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Parapeito...

"...nunca dês o coração a quem não quer (...) Evitei a vida como um pássaro que voa não se sabe como nem para onde, procurando apenas não pousar. Não passei pelas coisas, não compareci, inventei, fechei os olhos, menti, olhei de lado, disfarcei, sempre que pude, fugi. Hoje trago a alma branca, magoada de tanto protegê-la. Mas não a vendi. As minhas intenções eram boas, eu é que não as percebi. (...)A vida não me cabe no coração. (...)
Um dia vou no vaivém dos barcos que vejo da minha janela e atravesso o rio com eles. Um dia ponho os meus olhos num ponto do céu de onde nunca mais possam fugir, tão azul e tão longíquo, que eu nunca mais os possa reaver. (...) Um dia vou para as casas altas onde as coisas não se vêem. Ser como poeira num parapeito num mês sem vento. Um dia atiro a alma ao ar e serei friamente feliz. (...) Não me lembro do que aconteceu e do que inventei.
Mas um dia a minha alma foi contra a tua. Passámos dias inteiros agarrados. Não havia saída, nem dia, nem noite, nem eu, nem tu, nem vida lá fora. Era muito mais que amor.
O amor desdiz-se. Desmente-se. (...) O amor fica. (...) O amor fica, para nos lembrar da nossa fraqueza, da nossa doçura, da nossa humanidade. Para nos fazer mais pequenos do que pensámos. Para nos proteger da esperança. (...) Numa hora de amor envelhecemos vinte anos. (...) Era a nossa vida a passar."

Cemitério de raparigas, Miguel Esteves Cardoso,1996.